Interpretação do texto Macunaíma (Cap. V - Piaimã)


A seguir, você lerá um trecho do romance Macunaíma. Nele, o herói acaba de chegar a São Paulo e tem dificuldades para compreender a lógica que organiza a cidade. Leia o trecho e responda às questões propostas. 

Capítulo V - Piaimã 

A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagui-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira... Que mundo de bichos! que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da mandioca!... A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhas rindo tinham ensinado pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-D'água, em bulhas de sarapantar. 
Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói! Se levantou na cama e com um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro do outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhas e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova. 
E foi morar numa pensão com os manos. Estava com a boca cheia de sapinhos por causa daquela primeira noite de amor paulistano. Gemia com as dores e não havia meios de sarar até que Maanape roubou uma chave de sacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupou chupou e sarou bem. Maanape era feiticeiro. 
Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranha-céu com os manos, Macunaíma concluiu: 
- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. 
Há empate. 

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Villa Rica, 1990. p. 31-32. Fragmento. 

a) Ao chegar à cidade, Macunaíma usa os dados de sua cultura para entender aquela sociedade tão diferente da sua. Que elementos comprovam essa afirmação? 

b) "Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina." Comente o uso do termo "maquinando" nessa passagem do texto. 

c) Que elementos justificam a afirmação de que o encontro de Macunaíma com a cidade se constitui numa sátira social. 

d) Retire do trecho uma expressão que comprove o aproveitamento da cultura popular na rapsódia de Mário de Andrade. 

e) Embora Mário de Andrade negasse esse rótulo, Macunaíma foi considerado por Oswald de Andrade o livro mais antropofágico do movimento modernista. Indique ao menos uma razão que possa justificar essa observação por parte de Oswald de Andrade. 

f) Considere esta afirmação: "Macunaíma rejeita o trabalho e proclama o ócio como princípio. Ao repetir insistentemente 'ai, que preguiça!', o herói acaba por expressar um posicionamento alternativo em relação ao modo como se organizava a sociedade brasileira." Explique a afirmação, relacionando-a com o contexto histórico brasileiro do início do século XX. 

Gabarito

a) Macunaíma interpreta os ruídos constantes e excessivos da cidade como se fossem os ruídos da floresta, relacionando-os aos animais e seres habitantes das florestas (sagui-açu, onça-parda, tamanduás, boitatás, inajás, etc.). 

b) Trata-se de um trocadilho entre "maquinar" (que evidencia certo modo de pensar que aproxima o pensamento de algo automatizado) e "máquina" (relacionada aos aparelhos instrumentos) com que o personagem se depara, já que o herói não consegue pensar em outra coisa. 

Chame a atenção dos alunos para o fato de que, ao se encontrar em uma cultura diferente da sua, Macunaíma logo se apropria do conceito de "máquina" e passa a usar o verbo "maquinar". Esse procedimento reafirma uma característica do herói ao longo da narrativa: a rápida aprendizagem que lhe permite incorporar novos conhecimentos - ao descobrir o que é máquina, ele deixa de "pensar" e passa a "maquinar". 

c) A sátira social pode ser lida na relação entre homem e máquina, referida no texto. A cidade é constituída por máquinas, mas também é dominada por elas. As máquinas são produzidas pelo homem, mas também podem incomodá-lo e mesmo matá-lo, ou seja, trata-se de uma sociedade criada pelo homem, na qual ele divide o poder com as máquinas. 

d) O trecho que evidencia esse aproveitamento está em "porém jacaré acreditou? nem o herói!". Trata-se de uma expressão popular usada para mostrar a descrença de Macunaíma em relação ao modo de funcionamento das máquinas. 

e) Há várias razões que podem justificar a classificação de Macunaíma como livro antropofágico: a incorporação das lendas e do modo de pensar tipicamente indígenas a uma narrativa que mescla o modelo europeu ao modelo indígena de narrar; a ironia profunda que marca a mistura entre o popular e o erudito; a mistura proposital de temas, de linguagens e de elementos de culturas diversas, etc. 

f) Num momento histórico em que o Brasil se modernizava e o crescimento industrial implicava a exploração do trabalho para alcançar o progresso do país, Macunaíma repetia incessantemente" ai, que preguiça!", como se quisesse se manter alheio a essa busca desenfreada e mesmo desordenada para conquistar riquezas. É como se todos estivessem pondo o trabalho em primeiro plano, enquanto o herói propunha outro parâmetro: a vitória do ócio numa sociedade que não seria dominada pelo trabalho e por máquinas.