2 de outubro de 2016

Interpretação do romance O cortiço


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O cortiço apresenta um dinâmico painel social, centrado no proletariado urbano em formação, que luta para sobreviver com pouquíssimos recursos. Dessa condição resulta a necessidade de se morar num cortiço, moradia coletiva de caráter precário, com poucas condições de higiene e nenhum conforto. 

No romance, o cortiço, habitado por pessoas de diferentes origens e características - imigrantes portugueses e italianos, mulatos capoeiristas, policiais de baixa patente, mascates e lavadeiras - , é administrado de perto por seu proprietário, o português João Romão, que possui um claro projeto de enriquecimento. 

A obra, que tem como epígrafe "A verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade", está ancorada na observação rigorosa do mundo físico e na teoria determinista. Entretanto, ultrapassa o simples determinismo ao apresentar também outra perspectiva sobre a condição humana: no romance, a exploração física e econômica das pessoas é compreendida como consequência do modelo capitalista, cujo representante maior é o inescrupuloso João Romão, capaz de manipular tudo e todos para ascender socialmente. Esta é uma visão pessimista do funcionamento da sociedade brasileira, calcado na exploração de muitos para o sustento do privilégio de poucos. 

A linguagem de O cortiço é ágil e bem construída. Os dados da realidade concreta são captados por diferentes canais sensoriais, e os gostos, as cores e os cheiros ganham destaque na caracterização minuciosa do ambiente, das pessoas e de seu modo de vida. A personificação do espaço coletivo e a zoomorfização dos personagens, que frequentemente são rebaixados à condição animal, são estratégias usadas pelo autor para enfatizar a degradação do cortiço e das relações sociais ali constituídas. 

Leia a parte inicial do terceiro capítulo do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, e responda às questões propostas. 

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. 
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. 
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas. 
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia. 
Daí a pouco, em volta das bicas era um zumzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e rezingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.

GLOSSÁRIO
acre: cheiro forte, ativo, áspero, seco.
altercavam: discutiam com ardor.
zumzum: zumbido; som de insetos.
casco: couro cabeludo.
ensarilhavam-se: emaranhavam, ,. embaraçavam, enredavam.
rezingas: reclamações, rixas, altercações.
palhotas: pequenas casas rústicas, cobertas de palha. 
caniço: bambu. 
xilunguine: termo em língua bantu que significa "lugar dos brancos".
macuas: indivíduos pertencentes à etnia macua, do norte de Moçambique. 
cofió: gorro usado por pessoas de origem indiana. 


QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO

1. O primeiro parágrafo do texto sugere que o cortiço é um importante personagem do romance. Qual é a ação praticada pelo cortiço e descrita em todo o fragmento? 

2. Retire do texto uma passagem que acentua o caráter animalesco dos personagens. 

3. Encontre, no parágrafo final do texto, uma alusão à teoria darwinista, tão cara aos escritores naturalistas. 

4. Relacione o foco narrativo do romance com os objetivos perseguidos pelos escritores naturalistas. 

5. Embora eminentemente descritivo, o fragmento lido é bastante dinâmico. Que fatores contribuem para imprimir movimento à cena? 

GABARITO