A fuga para a infância é um dos temas recorrentes do Romantismo. Leia, a seguir, a primeira parte do poema "No lar", de Casimiro de Abreu.
No lar
Terra da minha pátria, abre-me o seio
Na morte - ao menos
Garrett
I
Longe da pátria, sob um céu diverso
Onde o sol como aqui tanto não arde,
Chorei saudades do meu lar querido
— Ave sem ninho que suspira à tarde. —
No mar — de noite — solitário e triste
Fitando os lumes que no céu tremiam,
Ávido e louco nos meus sonhos d'alma
Folguei nos campos que meus olhos viam.
Era pátria e família e vida e tudo,
Glória, amores, mocidade e crença,
E, todo em choros, vim beijar as praias
Por que chorara nessa longa ausência.
Eis-me na pátria, no país das flores,
— O filho pródigo a seus lares volve,
E concertando as suas vestes rotas,
O seu passado com prazer revolve! —
Eis meu lar, minha casa, meus amores,
A terra onde nasci, meu teto amigo,
A gruta, a sombra, a solidão, o rio
Onde o amor me nasceu — cresceu comigo.
Os mesmos campos que eu deixei criança,
Árvores novas... tanta flor no prado! ...
Oh! como és linda, minha terra d'alma,
— Noiva enfeitada para o seu noivado! —
Foi aqui, foi ali, além... mais longe,
Que eu sentei-me a chorar no fim do dia;
— Lá vejo o atalho que vai dar na várzea...
Lá o barranco por onde eu subia!...
Acho agora mais seca a cachoeira
Onde banhei-me no infantil cansaço...
— Como está velho o laranjal tamanho
Onde eu caçava o sanhaçu a laço!...
Como eu me lembro dos meus dias puros!
Nada m'esquece! ... e esquecer quem há-de? ...
— Cada pedra que eu palpo, ou tronco, ou folha,
Fala-me ainda dessa doce idade!
Eu me remoço recordando a infância,
E tanto a vida me palpita agora
Que eu dera oh! Deus! a mocidade inteira
Por um só dia do viver d'outrora!
E a casa? ... as salas, estes móveis... tudo,
O crucifixo pendurado ao muro...
O quarto do oratório... a sala grande
Onde eu temia penetrar no escuro! ...
E ali... naquele canto... o berço amado!
E minha mana, tão gentil, dormindo!
E mamãe a contar-me histórias lindas
Quando eu chorava e a beijava rindo!
Oh! primavera! oh! minha mãe querida!
Oh! mana! — anjinho que eu amei com ânsia —
Vinde ver-me, em soluços — de joelhos —
Beijando em choros este pó da infância!
Vocabulário de apoio
Ávido: ansioso, impaciente
Concertar: pôr em ordem, harmonizar
Filho pródigo: em parábola da Bíblia cristã, jovem que retorna arrependido à casa do pai após desperdiçar todos os seus bens
Fitar: olhar fixamente
Folgar: descansar
Laço: armadilha para apanhar caça
Lume: luz, brilho
Palpar: apalpar, tocar
Remoçar: tornar mais moço, rejuvenescer
Roto: esfarrapado, rasgado
Sanhaçu: pássaro com plumagem azulada ou esverdeada
Várzea: terreno baixo à margem de um rio
Volver: voltar, regressar
QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO
1. Como pode ser entendida a metáfora que encerra a primeira estrofe?
2. Nas quatro primeiras estrofes, o eu lírico ocupa dois espaços diferentes. Identifique-os e caracterize o estado de espírito do eu lírico relacionado a cada um deles.
3. Diante da paisagem de sua pátria, o eu lírico nota algumas mudanças.
a) Transcreva dois versos em que isso se evidencia.
b) Explique o que a percepção dessas mudanças indica.