Leo Cunha
O sabiá
Sabia que o sabiá sabia assobiar? Dizia o meu avô.
Sabia que o sabiá sabia avoar? Avoa, vô, avoa. E de ave ele entendia. Mas o sabiá da minha história não sabia avoar. Assobiar ele sabia. Mas, que mais batesse as asas, o sabiá não subia.
Avoa, sô, avoa! O pobre não decolava. Pulava lá do galho, aterrissava na bacia.
Não desistia o sabiá. Saltava, caía, pulava, caía, tentava, caía. Sabiá na bacia. À toa, sô, à toa. Todo mundo até ria, mas no fundo já sabia: o sabiá não sabia avoar.
Vivia a assobiar seu apetite: comer o ar, caber no ar.
Passar por cima das casas, das ruas, das gentes, do medo.
Passar de passarinho, passear devagarinho, sem pra onde nem caminho. À toa, à toa, a esmo. Só queria mesmo avoar.
Sonhos também havia. Asas arranhando a barriga das nuvens, voos atravessando a manhã vazia. Mas, entre as trapaças da brisa, o sabiá não saía.
Assobiava que eu nem te conto. Antes, o canto de tenor, a cor na noite escura. Depois, o canto de temor, a dor da falta de altura. Cantava que eu nem te canto, o sabiá desencantado.
Dias de sonhos rasantes, noites de sono arrasado. Mas ele, ressabiado, teimava em assobiar. Dorremifava macio, no galho ou na bacia, o desejo de avoar.
Um dia, o sabiá dizia, um dia eu consigo avoar.
A girafa
Girafa o meu avô não conheceu. Nunca teve o prazer, não foi apresentado. Mas o velho deitado dizia: filho de peixe, peixinho é.
Isso vale pra outros bichos. Girafa também é sempre igual.
Nada fala, tudo espia. Sem um pio, sem um fio de voz. Só em riso e pensamento, ironiza o mundo no andar de baixo.
Mas a girafa da minha história era muito diferente. A muda queria mudar. Não o mundo, mas a vida. Queria enganar o silêncio que lhe esganava a garganta. Queria encolher a dor de não escolher as palavras. Queria desemudecer.
E não bastava soltar umas palavras no vento. Também sonhava em cantar. Sonhava encantar o dia, molhar as tardes de poesia, melar o canto da noite com doces melodias.
Prestava atenção no trovão, no temporal, na ventania.
Tentava imitar o azulão, o rouxinol, a cotovia. Mas a voz não derramava. Então reclamava baixinho: para que tanta altitude, pra cantar só passarinho?
A girafa andava injuriada. Andava toda a cidade, do alto dos seus andares, adorando a paisagem. Mas ficava na saudade o canto de homenagem.
O sabiá e a girafa
O encontro se deu por acaso, por acaso o deus dos encontros.
O sabiá resolveu chorar no alto de um pé de caju. A girafa se lamentava no baixo daquele pé. Uma árvore muito esquisita, mas desgosto não se discute.
Estavam os dois ali. Os dois no mesmo pé. Ela vendo o que não cantava. Ele cantando o que não conhecia. Ele queria saltar nas alturas. Ela sonhava assaltar partituras.
E a dupla melancolia - ou foi a natureza? - tratou de cruzar os caminhos. A sabedoria do vento mandou o sabiá pro espaço. Pra ver se ele avoava. Pra ver se acertava o compasso, o sabiá avoado.
Mas ele caiu de cabeça na cabeça da girafa. Silêncio. Sabiá assustado. Contudo, depois do susto, o coitado gostou do que viu. Cada passo da girafa passeava ele no céu. Cada girada do pescoço, um horizonte descoberto. E ele começou a cantar.
A girafa ficou fascinada. Aquela voz afinada soltou sua cara amarrada. Desfez a careta enfezada. Ofereceu então moradia ao dono de tal melodia, de canto tão doce e terno. E o canto do sabiá virou o seu canto eterno.
O sabiá ficou morando na cabeça da girafa. A girafa, namorando o canto do companheiro.
Minha história acaba aqui. Mas a dos dois continua, sem plateia nem juiz, depois do final feliz.
CUNHA, Leo et aI. Meus primeiros contos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 9-12. (Coleção Literatura em minha casa: 3.)
Interpretação
1. Todo autor, ao decidir o que vai contar, decide também o tipo de narrador de sua história. Em geral, ele opta por um destes:
> um narrador que participa da história como personagem;
> um narrador que não participa da história, só observa e conta;
> um narrador que às vezes se "intromete" na história para se posicionar, dando opiniões.
a) Qual é o tipo de narrador no conto "O sabiá e a girafa"?
b) Copie um trecho que comprove sua resposta.
2. As personagens principais dessa história já aparecem no título do conto: "O sabiá e a girafa". Releia esta frase e faça as atividades propostas a seguir.
Mas a girafa da minha história era muito diferente.
a) Por que essa girafa era diferente?
b) Identifique no texto uma frase que comprove sua resposta.
c) O sabiá do conto também era diferente? Por quê?
3. Qual das duas personagens queria o impossível? Por quê?
4. Cada uma das duas personagens é caracterizada por desejos e sonhos. Leia o conto outra vez e indique quais são os desejos e os sonhos do sabiá e quais são os da girafa.
5. Releia o último parágrafo da narrativa e explique por que o final da história foi feliz.
Minha história acaba aqui. Mas a dos dois continua, sem plateia nem juiz. depois do final feliz.
Gabarito
1.
a) É o narrador que as vezes se "intromete" na história para dar sua opinião sobre o que acontece.
b) Possibilidades: "Assobiava que eu nem te conto"; "Cantava que eu nem te canto, o sabia desencantado"; "Mas a girafa da minha história era multo diferente".
2.
a) Porque queria cantar.
b) Sugestões: "Queria desemudecer"; "Também sonhava em cantar".
3. A girafa. Porque girafas não cantam.
4. Girafa: queria desemudecer e sonhava encantar o dia. Sabiá: queria comer o ar, caber no ar e sonhava arranhar a barriga das nuvens.
5. Essa é uma questão de inferência. Espera-se que os alunos concluam que a parceria entre os animais deu a eles o que queriam: "voar", descobrir horizontes, para o sabiá; e "ter voz", sentir o canto, para a girafa.